domingo, 24 de agosto de 2008

As pessoas deveriam entender o poder das palavras. Não é como um soco ou um tapa. Ficam marcas. Algo dificil de cicatrizar. O que eu li, confesso, não foi o pior. Triste mesmo foi o que veio depois. Porque é assim... As palavras sabe? elas carregam um peso. E naquele momento foi a dor. O chão sumindo aos poucos. Meus olhos se fechando na tentativa de conter as lágrimas. Porque elas insistem em me acompanhar? Tudo seria mais facil se não houvessem lembranças. Implorei para me perder e me escquecer. Tentei de todas as formas inexistir. Mas foi impossível.
Eu confesso que fingi. Mas não esqueci. Não mesmo. Elas ainda estão guardadas aqui. Comigo pra sempre. Como se fossem fantasmas. Todas aquelas palavras. Dentro de mim.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O encontro

Ele abriu a porta, que exibiu um barulho suave e incômodo. Aquele “nhec” de porta emperrada de filme de terror.
Sophia estava sentada sobre sua mesinha digitando algo do paciente anterior em seu notebook. Ainda não havia dirigido o olhar para o rapaz que acabara de entrar em sua sala. Acredito que mais por medo do que por distração. Não queria encarar aqueles belos olhos azuis. Não mesmo!
Do outro lado da sala, ainda meio tímido, o garoto analisava o ambiente. Havia pouca luz – algo extremamente agradável para quem não a suporta- e os móveis eram de cores fortes e ao mesmo tempo impactantes: Preto e Branco. Ele havia gostado daquilo, eu podia sentir o cheiro de agrado naquele ambiente.
Normalmente, quando entro na sala de Sophia, confesso que sinto cheiro de horror. Não entendo como ela consegue ficar tanto tempo em um lugar que fede tanto. Tudo bem que seu olfato não chega nem aos pés do meu. Não é nada apurado quanto o meu e nem tão eficiente. Mas ainda sim não compreendo como ela consegue. Sabe? O lugar é pesado, têm cores pesadas, lembranças pesadas. De pessoas que passam e sentem prazer em deixá-las ali. Sophia diz: - Despeje aqui os teus problemas. – Claro que não dessa maneira. Em sua profissão, as palavras devem ser muito bem escolhidas para não assustar o paciente, para deixá-lo confiante e assim, enfim, permitir que se encontre.
Eu sei que falo demais e que você deve estar se cansando de mim, mas preciso de uma pausa para um comentário: - Como as pessoas convivem com si mesmas durante tanto tempo e mesmo assim não se conhecem? Não se encontram? Não tem a capacidade de saber quem são? – Confesso que acho graça disso tudo. Deve ser muito desconfortável ser sem ser. E pior, abrigar dentro de si, corpos estranhos.

- Bem, eu... – Na verdade ele não falou. Pensou em pronunciar algumas frases soltas, mas seu olhar estava fixo nela! Naquela boca rosada, cabelos lisos e negros, longos. – Meu deus! – ele pensou. Jamais havia visto algo tão belo em toda sua vida. Pensava agora mesmo em pegar o seu quadro, sua tinta, seu pincel e pintar. Bem ali. No meio da sala.
Sophia ainda estava “distraída”, de cabeça baixa, quando sentiu sua presença. Olhou de canto, esperando que o ar lhe voltasse aos pulmões. Estava branca. Pálida. Era o medo, novamente reinando naquele local.
- Boa tarde senhor... – ela fingiu que não sabia o seu nome.
- Gabriel. – ele completou.
- Sim! Gabriel. – Meu deus, o que estou fazendo? Que confiança vou passar para um paciente, se nem ao menos sei seu nome? – ela pensou.
- Doutora, gostaria de falar sem muitas voltas. Círculos são para os fracos. – ele apertava os lábios, na tentativa de conter o suor que lhe caia sobre a testa.
- Então, você não gosta de círculos? Mas o que representariam eles para você? – Sophia tentava retomar seu papel de analista.
- Bom – ele pensou um pouco- Círculos são como estradas sem fim. E pensar que exista algo sem um começo ou um fim me deixa incomodado.
- Por quê?
- Simples. Porque deixa de fazer sentido. A ordem natural do mundo segue um padrão. Uma pessoa nasce, cresce, vive um determinado tempo e depois morre.
- E a morte não lhe desperta nenhum sentimento ruim? – ela se sentia mais calma agora.
- É claro que não. A morte é apenas uma de nossas passagens.
- Então, você acredita que existe um mundo além deste? – Sophia estava interessada.
- Não coloque palavras em minha boca Sophia! Em momento algum disse existir mais de uma vida, ou mais de um mundo. – Gabriel estava um pouco exaltado.
- Droga – Sophia pensou. Aquilo não era uma conversa e sim uma consulta. Ela sabia que não deveria sugestionar o pensamento de um paciente. O sentimento interior de uma pessoa vai muito além do nosso próprio campo de entendimento.
- Me desculpe Gabriel. Não foi o que eu quis dizer – ela tentava desmanchar o rastro deixado por aquelas palavras.
- Sim, então concerte. – ele tentava adivinhar seus pensamentos.
- Você poderia me dizer, o que seria então uma passagem?
- Com todo prazer doutora – Ele parecia se divertir.

Para mim, que espreitava tudo de longe, aquilo parecia mais um jogo do que uma análise. De um lado, Sophia parecia desajeitada, retraída e incomodada com a presença dele. Enquanto Gabriel, maravilhado com a beleza dela, se divertia. Obvio que isso aconteceria. Ele não era um garoto qualquer. Ela apenas não se lembrava, mas já se conheciam de longa data.


- Quando digo passagem – ele continuou seu discurso- me refiro a mais um dos acontecimentos que implicam na razão da nossa existência. O nascimento é uma passagem, a adolescência é uma passagem, a velhice é uma passagem e a morte também. A diferença é que a morte é a ultima.
- Huuum – ela apenas fazia sinais para que ele continuasse.
- Quando você é jogado aqui pelos seus pais, ao nascer, está sujeito as regras do mundo. Assim como qualquer animal, planta ou ser que habita esse ambiente, o homem é apenas esterco – Gabriel riu.
- Esterco?
- Sim. Depois que você perde a vida, vai pra baixo do chão e vira um punhado de adubo pra terra.
- Essa então é a ultima passagem? – Sophia perguntou
- Sim. Não existe alma sem corpo doutora. No final, somos apenas uma capa frágil com um cérebro inteligente.

Sophia parou por alguns instantes para processar tudo o que havia ouvido. Claro que ainda era muito cedo para qualquer pré-julgamento. Ela não sabia nada sobre ele, sua vida, ou o motivo de estar ali. Naquele momento, queria mesmo era perguntar logo sobre Emmy. Mas seria antiético e ela deveria esperar ele tocar no assunto. Estava apreensiva e pela primeira vez, parecia não saber como agir diante de um paciente.

- E, antes que a senhora diga qualquer coisa – ele interrompeu – gostaria que me dissesse o que aquela garotinha quer de nós.

Meu deus! Ela ficou imóvel. Sentiu um vento gelado percorrendo todo seu corpo, como um sopro. Começou a suar frio e ver as coisas embaçadas. – Vamos! Segure-a! Ela vai desmaiar! – eu gritava desesperada. Sempre me esqueço que eles não conseguem me ouvir.

- Doutora? Esta tudo bem? – Gabriel percebeu que havia algo de errado.
- Sim, eu só preciso me sentar um pouco. – Sophia aproximou-se de sua cadeira e respirou fundo.
- Que garotinha, Gabriel?
- Doutora, eu já disse, nada de andar em círculos.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Lembranças

- O que você sente? - Ele perguntou com toda suavidade.
- Eu sinto uma dor insuportável. - Ela respondeu, ainda ofegante.
- E você consegue me dizer aonde dói?
-Dói dentro da minha alma. - ela disse.
- Dentro da ALMA? - Ele sorriu, como se aquilo fosse algo impossível.
- Nós não temos alma minha querida, isso é utópico demais para os seres humanos.
- Então, se não da alma, de onde vem essa dor que me consome a cada segundo? - ela continha lágrima em seus olhos.

Por um instante ele as enxugou com as próprias mãos, em sinal de pena. Era dificil explicar para aquela pobre menina que a dor deve ser física e que o espírito é apenas uma invenção dos homens.

- Essa dor provavelmtente vem de algum dos seus orgãos Helena.
- Dói o braço? Ou quem sabe o estômago? - ele continuou, tentando convencê-la.
- Não, não dói nada que possa ser tocado ou visto.
- Então isso não é dor! É uma invenção da sua mente perturbada menina! - Ele aumentou o tom de voz, em sinal de desaprovação.

A menina parecia desconsolada. Mas mesmo ouvindo o que o seu pai dizia e tentando acreditar, a dor permanecia, como se fizesse parte do seu ser.

- Você acha realmente que a dor independe da alma? - ela perguntou, querendo ouvir um não como resposta.
- Mas é claro! Já disse que a alma é pura invenção.
- Então, faça-me o seguinte: Feche os olhos e prenda a respiração.
- Aonde você quer chegar Helena? - Ele estava impaciente.
- Papai, apenas faça o que peço! Se não me compreender, prometo encerrar essa história.

Ele imaginou que seria uma boa oportunidade para acabar com aquela bobeira toda.

- Sim! estou de olhos fechados.
- Agora, prenda a respiração, como se fosse o seu ultimo sopro de vida.

Silencio por algum tempo. Ele estava ficando cada vez mais vermelho e certamente próximo da morte, que chegou bem perto e sussurrou algumas palavras em seus ouvidos. Subtamente sua respiração voltou, como mágica.

- Papai? Se puder me ouvir, faço o meu ultimo pedido.

Ele apenas acenou com a cabeça, positivamente.

- Continue de olhos fechados, e agora, pense na mamãe que não está mais entre nós.

Mais alguns segundos se passaram.

- Agora abra os olhos meu pai. - Viam-se lágrimas escorrendo por toda sua face.
- O que veio em sua mente quando não podia mais respirar?- Helena perguntou ao pai.
- Toda a minha vida. O meu casamento, o seu nascimento, a morte da sua mãe.
-E o que você viu, quando pedi para que pensasse nela?
- Lembranças minha filha. Lindas lembranças.
- E agora, dói?
- Mais do que você pode imaginar.
- Dói os braços, ou o estômago?
- Não. - Ele ainda estava pensativo.
- Mas então, aonde dói meu pai? - A pequena menina olhava fixamente para ele.
- Dói a alma minha filha, dói a alma.


São as lembranças que alimentam a alma. São elas, a própria alma. Mesmo que a morte chegue, mesmo que a respiração nos falte, seremos eternos enquanto formos lembrados.