quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O encontro

Ele abriu a porta, que exibiu um barulho suave e incômodo. Aquele “nhec” de porta emperrada de filme de terror.
Sophia estava sentada sobre sua mesinha digitando algo do paciente anterior em seu notebook. Ainda não havia dirigido o olhar para o rapaz que acabara de entrar em sua sala. Acredito que mais por medo do que por distração. Não queria encarar aqueles belos olhos azuis. Não mesmo!
Do outro lado da sala, ainda meio tímido, o garoto analisava o ambiente. Havia pouca luz – algo extremamente agradável para quem não a suporta- e os móveis eram de cores fortes e ao mesmo tempo impactantes: Preto e Branco. Ele havia gostado daquilo, eu podia sentir o cheiro de agrado naquele ambiente.
Normalmente, quando entro na sala de Sophia, confesso que sinto cheiro de horror. Não entendo como ela consegue ficar tanto tempo em um lugar que fede tanto. Tudo bem que seu olfato não chega nem aos pés do meu. Não é nada apurado quanto o meu e nem tão eficiente. Mas ainda sim não compreendo como ela consegue. Sabe? O lugar é pesado, têm cores pesadas, lembranças pesadas. De pessoas que passam e sentem prazer em deixá-las ali. Sophia diz: - Despeje aqui os teus problemas. – Claro que não dessa maneira. Em sua profissão, as palavras devem ser muito bem escolhidas para não assustar o paciente, para deixá-lo confiante e assim, enfim, permitir que se encontre.
Eu sei que falo demais e que você deve estar se cansando de mim, mas preciso de uma pausa para um comentário: - Como as pessoas convivem com si mesmas durante tanto tempo e mesmo assim não se conhecem? Não se encontram? Não tem a capacidade de saber quem são? – Confesso que acho graça disso tudo. Deve ser muito desconfortável ser sem ser. E pior, abrigar dentro de si, corpos estranhos.

- Bem, eu... – Na verdade ele não falou. Pensou em pronunciar algumas frases soltas, mas seu olhar estava fixo nela! Naquela boca rosada, cabelos lisos e negros, longos. – Meu deus! – ele pensou. Jamais havia visto algo tão belo em toda sua vida. Pensava agora mesmo em pegar o seu quadro, sua tinta, seu pincel e pintar. Bem ali. No meio da sala.
Sophia ainda estava “distraída”, de cabeça baixa, quando sentiu sua presença. Olhou de canto, esperando que o ar lhe voltasse aos pulmões. Estava branca. Pálida. Era o medo, novamente reinando naquele local.
- Boa tarde senhor... – ela fingiu que não sabia o seu nome.
- Gabriel. – ele completou.
- Sim! Gabriel. – Meu deus, o que estou fazendo? Que confiança vou passar para um paciente, se nem ao menos sei seu nome? – ela pensou.
- Doutora, gostaria de falar sem muitas voltas. Círculos são para os fracos. – ele apertava os lábios, na tentativa de conter o suor que lhe caia sobre a testa.
- Então, você não gosta de círculos? Mas o que representariam eles para você? – Sophia tentava retomar seu papel de analista.
- Bom – ele pensou um pouco- Círculos são como estradas sem fim. E pensar que exista algo sem um começo ou um fim me deixa incomodado.
- Por quê?
- Simples. Porque deixa de fazer sentido. A ordem natural do mundo segue um padrão. Uma pessoa nasce, cresce, vive um determinado tempo e depois morre.
- E a morte não lhe desperta nenhum sentimento ruim? – ela se sentia mais calma agora.
- É claro que não. A morte é apenas uma de nossas passagens.
- Então, você acredita que existe um mundo além deste? – Sophia estava interessada.
- Não coloque palavras em minha boca Sophia! Em momento algum disse existir mais de uma vida, ou mais de um mundo. – Gabriel estava um pouco exaltado.
- Droga – Sophia pensou. Aquilo não era uma conversa e sim uma consulta. Ela sabia que não deveria sugestionar o pensamento de um paciente. O sentimento interior de uma pessoa vai muito além do nosso próprio campo de entendimento.
- Me desculpe Gabriel. Não foi o que eu quis dizer – ela tentava desmanchar o rastro deixado por aquelas palavras.
- Sim, então concerte. – ele tentava adivinhar seus pensamentos.
- Você poderia me dizer, o que seria então uma passagem?
- Com todo prazer doutora – Ele parecia se divertir.

Para mim, que espreitava tudo de longe, aquilo parecia mais um jogo do que uma análise. De um lado, Sophia parecia desajeitada, retraída e incomodada com a presença dele. Enquanto Gabriel, maravilhado com a beleza dela, se divertia. Obvio que isso aconteceria. Ele não era um garoto qualquer. Ela apenas não se lembrava, mas já se conheciam de longa data.


- Quando digo passagem – ele continuou seu discurso- me refiro a mais um dos acontecimentos que implicam na razão da nossa existência. O nascimento é uma passagem, a adolescência é uma passagem, a velhice é uma passagem e a morte também. A diferença é que a morte é a ultima.
- Huuum – ela apenas fazia sinais para que ele continuasse.
- Quando você é jogado aqui pelos seus pais, ao nascer, está sujeito as regras do mundo. Assim como qualquer animal, planta ou ser que habita esse ambiente, o homem é apenas esterco – Gabriel riu.
- Esterco?
- Sim. Depois que você perde a vida, vai pra baixo do chão e vira um punhado de adubo pra terra.
- Essa então é a ultima passagem? – Sophia perguntou
- Sim. Não existe alma sem corpo doutora. No final, somos apenas uma capa frágil com um cérebro inteligente.

Sophia parou por alguns instantes para processar tudo o que havia ouvido. Claro que ainda era muito cedo para qualquer pré-julgamento. Ela não sabia nada sobre ele, sua vida, ou o motivo de estar ali. Naquele momento, queria mesmo era perguntar logo sobre Emmy. Mas seria antiético e ela deveria esperar ele tocar no assunto. Estava apreensiva e pela primeira vez, parecia não saber como agir diante de um paciente.

- E, antes que a senhora diga qualquer coisa – ele interrompeu – gostaria que me dissesse o que aquela garotinha quer de nós.

Meu deus! Ela ficou imóvel. Sentiu um vento gelado percorrendo todo seu corpo, como um sopro. Começou a suar frio e ver as coisas embaçadas. – Vamos! Segure-a! Ela vai desmaiar! – eu gritava desesperada. Sempre me esqueço que eles não conseguem me ouvir.

- Doutora? Esta tudo bem? – Gabriel percebeu que havia algo de errado.
- Sim, eu só preciso me sentar um pouco. – Sophia aproximou-se de sua cadeira e respirou fundo.
- Que garotinha, Gabriel?
- Doutora, eu já disse, nada de andar em círculos.